
Seja você mesmo seja único
seja você mesmo, seja único: consuma"
Com Freud (1914/1974) vimos que o narcisismo primário do bebê se apresenta como condição de possibilidade do surgimento do sujeito. Assim é esperado na infância. Porém, sua persistência apresenta uma dimensão patológica. Defendemos a tese de que o narcisismo da cultura contemporânea reproduz o narcisismo primário. Segundo Costa (1988), a cultura do narcisismo é
aquela na qual o conjunto de itens materiais e simbólicos maximizam real ou imaginariamente os efeitos de Ananké, forçando o Ego a ativar paroxisticamente os automatismos de preservação (mecanismos de defesa), face ao recrudescimento da angústia de impotência (p. 165).
Nessa cultura, a "experiência de desamparo é levada a um ponto tal que torna conflitante e extremamente difícil a prática da solidariedade social" (Costa, 1988, p. 165). O sujeito fragilizado pela mídia se torna o único culpado por não possuir os signos do sucesso. é preciso lutar para sobreviver e isso inclui evitar o adversário: o sujeito se encontra só.
Segundo Bauman (1998), o homem moderno, através da autonomia da razão, busca a felicidade como um projeto coletivo. O preço dessa busca é perder a liberdade individual, mas a segurança é um subproduto. O homem pós-moderno tem toda liberdade para buscar o seu prazer individual, mas perde a segurança do coletivo. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais.
Dufour (2005) assevera que na pós-modernidade não estamos mais lidando com o sujeito neurótico caracterizado por uma culpabilidade compulsiva. O que o define é algo como o sentimento de onipotência quando ele é bem-sucedido e de impotência quando não o é. A culpabilidade que procedia de uma frustração implicava a elaboração de um projeto pessoal que, na modernidade, podia passar por muitos caminhos e se desdobrar em um dos campos em que uma compensação simbólica parecesse possível. Na posição de Dufour, o substituto do sentimento de culpa na pós-modernidade é a vergonha que exprime a intolerância narcísica à frustração e convoca uma remissão rápida.
Na tentativa de tamponar os limites do real, o sujeito pós-moderno não se submete a nada, somente a si mesmo e sua satisfação. A ciência, considerada juntamente com a arte como uma das grandes realizações do homem, não pode deixar de acompanhar tal perspectiva contemporânea. Nesse sentido, o corpo - para Freud (1930/1996) "condenado a decadência e a dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência" (p. 85), como uma das três direções de sofrimento apontadas por Freud em O mal-estar na cultura (1930/1996) - com o advento das novas tecnologias, é submetido a incontáveis inovações, buscando proporcionar aos homens a ilusão de um corpo e vitalidade ideais, o ideal de juventude.
Assim, a ordem do dia é a busca frenética pelo prazer do corpo. Prazer sem limites, porque todo o objeto de prazer pode ser consumido e devorado em uma lógica perversa que desmente os limites (a castração), pois, nem o outro é um limite.
A culpa, nesse sentido é exacerbada a esferas grandiosas, mas dessa vez não se trata do sentimento de culpa com relação ao outro, culpa estruturante que origina o superego. A culpabilização se manifestará no próprio eu com relação aos apelos contemporâneos de beleza, fruição do corpo e juventude.
O outro é colocado no campo macabro da manobra que nega sua dimensão de irredutibilidade aos desejos do eu. Os objetos descartáveis, efêmeros e voláteis são oferecidos continuamente ao sujeito. A relação entre o eu e o outro não precisa ser mediada pela fantasia. Não existe limite para o gozo, a cena perversa não precisa habitar o campo da fantasia por poder ser realizada, ou melhor, comprada em um sexshopping ou na internet. Nesse universo, o único valor é o eu, o mínimo eu desvencilhado de todos os atributos éticos que possam impedir sua buscar narcísica de prazer. Dessa forma, a cultura pós-moderna pode ser definida como "cultura narcísica".
Roudinesco (2006) observa um movimento paradoxal com relação à "cultura do narcisismo". Segundo a autora, quanto mais o mundo é unificado por uma economia de mercado, que contém em si as ilusões de uma universalidade, mais a afirmação narcísica progride. Trata-se da manifestação de uma pretensão do eu de se diferenciar da massa para melhor se adaptar a ela.
é nesse sentido que, na pós-modernidade, os ideais de ego estabelecidos pelo consumo e a promessa de felicidade impõem ao sujeito um excesso de exigências, instaurando um sentimento de culpabilização frente a essas demandas. O imperativo do gozo convoca o sujeito à realização de uma felicidade plena e impossível de ser atingida. Ao não corresponder às expectativas alçadas a um grau tão intenso, o sentimento de culpa em relação ao eu, característico do sujeito pós-moderno, tende a se intensificar.